Não é difícil ver gestos depreciativos ou ouvir xingamentos e insultos em partidas de futebol. No calor de um clássico, de uma grande decisão ou dos jogos corriqueiros dos campeonatos, jogadores e torcedores, vez ou outra, perdem a cabeça e lançam mão de agressões verbais ou físicas, evidenciando seus preconceitos.
A raiz do problema do preconceito nos campos é antiga, como o próprio esporte. Um dos casos mais famosos aconteceu em 1914. Durante uma partida do Fluminense contra o América, pelo Campeonato Carioca, a maquiagem que o jogador mestiço Carlos Alberto usava manchou com o suor que escorria pelo corpo, revelando sua verdadeira cor. A torcida adversária não perdoou e lhe atribuiu o apelido de ”Pó-de-Arroz”. Tudo isso porque o futebol, esporte de elite na época, marginalizava atletas negros, mulatos e pobres. Com isso, eles usavam os mais variados tipos de artifícios para ”driblar” o preconceito e participar da nova modalidade esportiva.
Mais recentemente, Vagner Love, do Flamengo, foi vítima de manifestações racistas na derrota do time carioca para o Emelec, na noite do dia 5 deste mês, em Guayaquil, no Equador. Alguns torcedores da equipe equatoriana imitaram sons de macacos quando o atacante entrou no gramado para fazer aquecimento, antes do apito inicial, e em alguns momentos da partida. O caso atual lembra um outro não tão antigo, em que Grafite, ex-atacante do São Paulo, foi chamado de macaquito pelo argentino Leandro Desábato, do Quilmes, durante uma partida pela Copa Libertadores da América, em 2005. Grafite prestou queixa e Desábato, que recebeu voz de prisão logo após o jogo, teve que passar duas noites detido e não pôde retornar para a Argentina com seus colegas de clube.
Assim como nas instâncias civis comuns, o ato preconceituoso dentro dos campos pode ser punido, desde que seja feita a ocorrência formalizada. Antes do endurecimento para os casos reincidentes, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) já havia alterado o seu estatuto, conforme determinação da Federação Internacional de Futebol (Fifa), prevendo penalidades para atos de discriminação de raça, cor, idioma e religião. O artigo 187 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) também prevê punições para ofensa moral que represente discriminação à raça, cor ou etnia. Os punidos são tanto o atleta, treinador ou dirigente que fizer a discriminação em campo de futebol quanto o seu clube.
Em entrevista para a AJEsportes, Mauricio Murad, professor adjunto aposentado do Departamento de Ciências Sociais da Uerj e professor de sociologia dos esportes do programa de mestrado da Universidade Salgado de Oliveira (Universo), conta um pouco sobre as origens do preconceito no futebol e suas múltiplas representações desde o início do esporte até os dias atuais. Seu mais recente livro Para Entender a Violência no Futebol será lançado ainda no primeiro semestre de 2012 pela Editora Saraiva.
AJESPORTES – Como foi a introdução do futebol no Brasil, inicialmente tido como esporte de elite, e como o racismo se mostrou neste período?
MAURICIO MURAD – Vamos partir de 1894, o ano que é considerado como o da chegada oficial do futebol no Brasil, com Charles Miller, em São Paulo, mais especificamente no porto de Santos. Apenas seis anos após a Abolição dos Escravos (1888) e cinco da Proclamação da República (1889). Uma longa e profunda herança colonialista e escravista pesava ainda nas nossas estruturas sociais, nas nossas instituições e o futebol absorveu, direta ou indiretamente, essas influências. Por isso, foi durante os primeiros tempos, elitista, racista e excludente, reproduzindo constantes estruturais de nossa formação, como a concentração e a exclusão. O racismo foi um dos traços mais pregnantes das conjunturas iniciais do futebol brasileiro. Um racismo acoplado a um elitismo social e cultural flagrantes, na concentração de rendas, de poder e de oportunidades.
AJESPORTES – O Brasil é reconhecido como um dos maiores ”exportadores” de craques do futebol. Apesar de toda a boa fama dos nossos atletas, o preconceito étnico é ainda algo recorrente?
MAURICIO MURAD – O Brasil é um dos maiores exportadores de grandes craques de futebol do mundo, tanto em quantidade como em qualidade, e não é de hoje. Já nas décadas de 1920 e 1930, exportávamos jogadores e esta foi uma conjuntura bem interessante, para estudos e pesquisas, especialmente o chamado “mercado italiano”. E, na maioria dos casos, nossos atletas deixam uma impressão muito positiva nos países, para onde emigram. Contudo, o preconceito surge e ressurge aqui e ali, com razoável e preocupante frequência. Como Maquiavel afirmou com rara sabedoria: “os preconceitos têm mais raízes do que os princípios”.
AJESPORTES – Nos casos de preconceito contra jogadores brasileiros, na maioria dos casos relatados, fica mais evidente a questão étnica ou a questão racial?
MAURICIO MURAD – Ambas e as evidências empíricas estão aí, se oferecendo à investigação e leitura mais consistentes, teórica e metodologicamente. Lamentavelmente, os casos são inúmeros, inclusive com jogadores de ponta do futebol mundial, como Robinho e Roberto Carlos, entre outros, é claro.
AJESPORTES – O Campeonato Carioca de 1923 foi definido como emblemático, justamente pelo fato de que o time do Vasco da Gama era composto por negros, mulatos e brancos pobres. Qual foi a repercussão desse episódio na época e como este fato modificou o elitismo do esporte?
MAURICIO MURAD – Já se esboçava um movimento que tendia para mudanças no Brasil, nos princípios dos anos de 1920. A Semana de Arte Moderna, a Fundação do Partido Comunista do Brasil, o Tenentismo e seus desdobramentos, no início da década seguinte. No âmbito específico do futebol, alguns sinais foram dados por alguns clubes, em conjunturas imediatamente anteriores, como o Bangu e o Corinthians. O Vasco de 1923 representa a culminância de todo um processo de mudanças e revisões, que se instalara na sociedade e na cultura, e que repercutia, também, no universo do nosso futebol. E no Vasco, a inclusão social e racial, não foi apenas um traço pontual, mas uma “postura institucional”. E foi uma contribuição, porque ajudou a denunciar e a balançar os preconceitos social e racial no Brasil. Não resolveu, claro, mas foi um auxílio. Nenhum esporte, por mais simbólico, impactante e massivo que seja, panaceia para a questão social. Não resolve tudo, é óbvio, mas ajuda.
AJESPORTES – Xenofobia e preconceito racial são os tipos mais relatados quando o assunto é preconceito no esporte. A homofobia parece não ser amplamente discutida. Há algum critério específico de punição para preconceito nesses casos ou não?
MAURICIO MURAD – A homofobia é uma das dimensões mais delicadas e que reclama de nossas consciências e de nossas políticas públicas, um enfrentamento mais direto, aberto e imediato. E não somente no futebol, dentro ou fora das “quatro linhas”, como também em quase todos os setores e instituições sociais. Urge o questionamento dessas culturas machistas, agressivas e violentas, contra a opção sexual feita pelas pessoas. No futebol e em todos os grupos e atividades, que permeiam a nossa existência social.
AJESPORTES – O futebol feminino ainda é alvo de várias formas de preconceito, já que o esporte ainda é maciçamente composto por homens. Como foi a introdução das mulheres no futebol brasileiro, caracterizado por muitos como machista?
MAURICIO MURAD – O futebol feminino é um dos mais sólidos exemplos daquilo que falamos anteriormente. As variáveis são muitas. Desde sua chegada histórica ao Brasil, como foi sendo incorporado aos clubes, as dificuldades e barreiras as quais enfrentou e enfrenta até hoje, passando pela cultura dos clubes e das famílias, até as diferenças estabelecidas de patrocínio, apoio institucional, patrocínios, visibilidade na mídia, entre outras coisas. É uma temática ampla, complexa e riquíssima de pesquisas e produção de novos conhecimentos sobre o universo do futebol e, mais ainda, sobre o universo cultural e social brasileiros.
Fonte: AJEsportes